O recurso da intertextualidade nunca esteve tão presente no discurso
jornalístico como nos dias atuais. A presença desse recurso nos textos da mídia
é um fato que desperta interesse em sua investigação. Frasson (1992) já
chama a atenção para a relação entre intertextualidade e argumentação.
Perelman (1972), ao rediscutir o valor da retórica, traz em seu texto, "O
tratado da argumentação", algumas considerações sobre a argumentação.
Entre essas considerações, destaca-se a ocorrência verbal da repetição no
processo discursivo. O autor acrescenta, ainda, que a repetição faz com que
atribuamos diferentes valores aos elementos repetidos em um novo discurso
enunciado.
O
termo intertextualidade foi criado a partir dos estudos de Bakhtin sobre enunciação,
na qual há um processo de construção da
significação da palavra inserida em um processo dialógico - experiência
verbal de um sujeito com os enunciados dos outros:
"Nossa fala é preeenchida com palavras de outros, variáveis
graus de alteridade
e variáveis graus do que é de nós próprios, variáveis graus de consciência
e de afastamento. Essas palavras de outros carregam com elas suas próprias
expressões, seu próprio tom avaliativo, o qual nós assimilamos, retrabalhamos
e reacentuamos". (1986, p.89)
A pesquisadora Kristeva, no final dos anos 60s, define o termo
intertextualidade. Para ela, intertextualidade é a inserção da história em
um texto e deste texto na história.
Fairclough
(2002) afirma que por inserção da
história em um texto, compreende-se a absorção do texto e sua construção
com base em textos do passado. Por inserção do texto na história, entende-se
que o texto responde, reacentua e retrabalha textos do passado e assim ajuda a
fazer história e a moldar outros textos.
Também
Kristeva propõe a utilização de
um outro termo, transposição o qual é capaz de caracterizar a noção de
processo, de agenciamento, de passagem de um sistema significativo a outro. Para
a autora, o sujeito passa a ser texto, uma produtividade, visto que ele é o
ponto de intersecção de várias cadeias de significantes, e a enunciação
define-se como o próprio funcionamento da linguagem. Foucault (1993) também
compartilha com a idéia de Kristeva quando define o sujeito como um ponto de
articulação de vários discursos fundadores de verdade, sendo assim uma
manifestação do discurso dentro de uma cadeia intertextual infinita.
Dessa
forma, de acordo com Kirchof (1996, p.100), a análise do enunciado é de ordem
sintagmática e dá conta das relações de interdependência interna da
manifestação pontual do texto, “portanto todo enunciado está crivado do
processo enunciativo, logo a análise sintagmática leva à paradigmática, a
qual revela o processo de enunciação ou a intertextualidade, na qual surgem as
várias vozes da cultura”.
É
a partir dos procedimentos teóricos e metodológicos da Análise de Discurso de
linha francesa, principalmente em sua terceira época, a AD-3, que os estudos
sobre intertextualidade se implementaram e ganharam espaço entre as teorias
contemporâneas da linguagem. A terceira época da AD-3 aparece no texto de Pêcheux
(1983) como uma reflexão em busca de novas formulações que deixam claro o seu
caminho. As afirmações que o autor faz apontam para alguns desenvolvimentos teóricos
que caminham para a abordagem da heterogeneidade que conduz às formas lingüísticas
discursivas do discurso do outro, colocado em cena pelo sujeito, ou do discurso
do sujeito colocando-se em cena como um outro. Esta fase é a que trabalha sob o
signo da heterogeneidade. A partir dos trabalhos de Foucault, Bakhtin, Lacan,
começamos a perceber a existência da polifonia como marca mais característica
dos discursos. Bakhtin estuda formas lingüísticas que marcam
essas intromissões, na análise da questão dos discursos relatados, na
“Poética de Dostoieviski” (1981) e na “Teoria do Romance” (1988).
Observam-se, nas obras estudadas, formas que fornecem a imagem da linguagem no
discurso que “nada mais são do que a presença do eu/outro no discurso”.
Percebemos,
nesta fase, a marca de Authier-Revuz através de seu trabalho sobre a
heterogeneidade, nascida da articulação entre as concepções de Benveniste,
de Bakhtin, de Pêcheux e de Lacan. Nesse trabalho (1982, p.91-151), a autora
detalha as formas metaenunciativas para conduzir o discurso entre o sistema, a
ideologia, o imaginário, o inconsciente. Authier-Revuz tem analisado as marcas
explícitas daquilo que chama de heterogeneidade mostrada como forma de ruptura
que aparece no fio do discurso, colocando em confronto a identidade/alteridade
do sujeito. Essas marcas articulam-se com uma heterogeneidade constitutiva da
linguagem, não marcada na superfície,
mas resgatada pela
interdiscursividade. O sujeito, impossibilitado de fugir da heterogeneidade
constitutiva no momento de explicitar a presença do outro, expressa seu desejo
de dominância, sua ilusão de unidade.
“... existe uma negociação entre a heterogeneidade mostrada na
linguagem e a heterogeneidade constitutiva da linguagem em que o sujeito,
movido pela ilusão de centro, pela ilusão de ser a fonte do discurso,
localiza o outro e delimita o seu lugar para marcar o seu território... “
(Brandão, 1997, p. 42)
Os
enunciados de cada discurso têm um percurso que faz com que carreguem a memória
de outros discursos. De acordo com Maingueneau (l984), essa idéia nos leva a
observar a relação entre memória e discurso. O autor afirma que:
“...toda a produção discursiva faz circular formulações
já enunciadas, fórmulas que constituíam o ritual que presidia a
enunciação de um discurso anterior”. A esse processo o autor atribui
duas características: o discurso agente, aquele que se apropria de enunciados
de formação discursiva anterior; e o discurso paciente, aquele que fornece
material para essa apropriação. Dessa forma, o discurso agente possui em seu
domínio formulações que se repetem, se transformam, produzindo efeitos de memória.
A repetição é um elemento que se
inscreve no interior do mesmo discurso. Essa repetição provoca o retorno dos
discursos tanto diacronicamente na superfície lingüística, quanto
sincronicamente no tempo, fazendo
com que os mesmos assuntos voltem no fio do discurso. Assim a repetição do
discurso é inevitável.
“A noção de repetição envolve a idéia do retorno do Mesmo, mas
que, pelo fato de voltar em outro lugar e em outro tempo, é Outro. Assim, um
enunciado, nunca poderá ter o mesmo sentido da formulação original, isto
porque o contexto histórico
de que ele passa a fazer parte é outro.” (Deleuze,1988)
A AD traz à tona a noção de memória discursiva que nada tem a ver com
a noção de memória definida pela psicologia. De acordo com Brandão(1997):
" a noção de memória discursiva diz respeito à existência
histórica do enunciado no interior de práticas discursivas: como certos
enunciados estão na origem de atos novos, como são retomados ou transformados,
e qual a força de sua permanência".
Outros
autores também abordam a noção de memória. Entre eles podem ser citados Pêcheux
(1993-1999), Foucault (1995) e Courtine(1981). Para Pêcheux, a memória do
discurso são os pré-construídos que confirmam o que foi dito, o qual, por sua
vez, afirma que é nesse momento que entra em cena a paráfrase: não só retoma
o que foi dito, como também movimenta, atualiza, reformula, atualizando um
determinado sentido. Já Foucault resgata a noção de memória definindo-a como
presenças, cujos saberes, num dado discurso, podem ser esquecidos, reiterados,
atualizados ou modificados. Por outro lado, Courtine fala em um processo de
reconfiguração, porquanto a memória discursiva obriga o retorno das relações
imaginárias do sujeito (produtor do texto) com seu histórico-social, processo
que vê a memória como condição de um acontecimento histórico.
Quanto
ao acontecimento histórico, Pêcheux (1990, p.19-28) afirma que este põe em
confronto o discursivo sobre a denominação desse acontecimento. Os enunciados
remetem ao mesmo fato, mas não constroem a mesma significação. O discursivo,
com base no acontecimento, atravessa outros fatos, outros lugares, outros
discursos, formando o "repetitível". Dessa forma, a origem de um
discurso sempre nos faz lembrar outros discursos
já enunciados, mas que, muitas vezes, temos dificuldade de delimitar. A
citação de Orlandi (1986, p.6)
ilustra o processo de interpretação:
"A interpretação para a AD, especialmente para se tomar o discurso
como um acontecimento discursivo torna-se um gesto necessário que liga língua
e história na produção de sentidos, tanto na dimensão do sujeito como na
sociedade com suas instituições".
De outro lado, encontram-se os leitores que vão dar sentido ao que estão
lendo. Estes têm de encontrar maneiras de combinar os elementos textuais em um
texto coerente, no sentido de controlar os processos discursivos que são
exteriores a eles. Este posicionamento implica sujeitos sociais e discursivos
para o processamento do texto. A coerência, segundo Fairclough (2001, p.171),
"não é uma propriedade dos textos, mas uma propriedade que os intérpretes
impõe aos textos, e diferentes intérpretes possivelmente geram diferentes
leituras coerentes do mesmo texto". Os textos estabelecem posições
interpretativas para aqueles que usam suposições de experiências anteriores,
mas nem sempre os leitores resolvem as pistas dos textos. Algumas leituras podem
criar interpretações resistentes. Isso quer dizer que nem todos os leitores são
submissos às posições estabelecidas nos textos. Os leitores, na visão de
Fairclough (2001) são:
" É claro, mais do que sujeitos do discurso em processos de
discursos particulares; eles são também sujeitos sociais, com experiências
sociais particulares acumuladas e com recursos orientados variavelmente para múltiplas
dimensões da vida social, e essas variáveis afetam os modos como vão
interpretar textos particulares".
"Lobby não come lobo", disse Zagalo quando convocou certa
vez a seleção brasileira, numa resposta clara aos lobistas de plantão que
defendiam, intransigentemente, a convocação de Romário. Fomos à Olimpíada
sem ele. Zagalo apostou suas fichas em Bebeto e perdemos. Na lista dos 30, para
o torneio da Arábia Saudita, Romário, Bebeto e Edmundo estão relacionados.
Edmundo pelo menos não irá e Bebeto está no Cruzeiro para disputar a final
mundial interclubes contra o Borussia em meados do mês que vem. Por que Zagalo
relacionou os três? As respostas a gente tente encontrar no labirinto das idéias
do nosso treinador.
Na verdade Zagalo quer
evitar polêmicas com os lobistas de plantão. Romário está longe lá no Valência.
Mas por aqui, o pessoal romarista por convicção e juramentado, de vez em
quando dá estocadas na linha de cintura de Zagalo: E olhem que Romário até o
final da semana passada, tinha
feito só um gol no Campeonato Estadual e o Valência ocupa a 17a
colocação. Se Romário é bom, e isso não se discute, a verdade é que
numa seleção além de ser craque é preciso que o craque seja profissional
acima da sua arte, do seu talento e de sua inteligência.
Zagalo, que ostenta, entre
tantos troféus, o Belfort Duarte, por nunca ter sido expulso de campo, faz
disso um apanágio de vida profissional e usa como argumento para combater a
indisciplina na seleção. Zagalo não esquece o que o craque Romário fez antes
da final, da Copa América, quando interrompeu o tratamento muscular para curtir
uma noite numa danceteria de Santa Cruz. Se Romário já disse que sem curtir a
"dolce vita" sua bola murcha, como é que iremos contar com ele em 98
na sedutora Paris? Por que Zagalo relacionou Romário na lista dos 30 para a Arábia
Saudita? Medo dos lobistas ou a simples colocação do nome é uma maneira de
aplacar a ira santa ou demoníaca dos romaristas?
Os mesmos questionamentos,
embora numa situação um pouco diversa, fazemos em relação a Edmundo, incluído
na lista dos 30. A memória nacional
é curta e Zagalo deve Ter sofrido pequeno ataque de amnésia. Esqueceram o que
Edmundo fez na final da Copa América? Fosse o árbitro Jorge Nieves correto e
teríamos ficado com dez em campo naquela
final de La Paz.
Zagalo deve conhecer bem a
história do escorpião e da tartaruga. O escorpião queria atravessar o rio e
pediu ajuda à tartaruga. A coitada disse: "Veja lá, não vá me
picar". No meio da travessia o escorpião ferrou a tartaruga. É o instinto
cruel. Edmundo não é um animal como a torcida o chama, ele é um araquinídeo
[sic] de duas pernas. Zagalo é a Tartaruga. Estamos a sete meses da Copa. O rio
está calmo e a Tartaruga vai começar a nadar, e o escorpião já está sobre
as costas de Zagalo.
A ferroada, pela índole araquinídea [sic] e pelos antecedentes de
Edmundo, é certa. Resta saber se Zagalo tem algum antídoto contra o veneno
edmundiano...
(
Gazeta Esportiva / novembro de
1997)
A
frase inicial do texto -Lobby não come lobo - constitui-se um processo
intertextual, pois nos leva ao interdiscurso “Lobo não come lobo”. Esse
processo, chamado por Grésillon & Maingueneau (1984) de “détournement”,
designa a alteração na forma/conteúdo de provérbios, slogans, com o objetivo
de captação ou subversão, de acordo
com a intenção do sujeito produtor do texto. Na alteração temos a palavra
“lobby” (grupo de pessoas que têm como atividade buscar influenciar decisões)
no lugar do vocábulo “lobo” que faz parte do nome do treinador Mário Jorge
Lobo Zagalo. Com esse processo, o articulista monta toda a sua trajetória
argumentativa sobre a validade da afirmação do provérbio reestruturado.
O comentarista esportivo
Dalmo Pessoa, em sua crônica, deixa claro,
a partir do título, os efeitos de sentido que sugere com os
denominativos Zagalo e Escorpião. O par de palavras nos leva a uma oposição
semântica: homem/animal. O autor Dalmo Pessoa ocupa, como enunciador, o seu
lugar discursivo: cronista esportivo. Esse processo é determinado pela
materialidade discursiva e pela assinatura do autor. Na crônica, o autor faz
uma reflexão sobre a convocação dos jogadores Romário e Edmundo. Para que o
leitor reflita sobre a assunto, o articulista faz uma retomada de fatos históricos
ocorridos com os jogadores em destaque. O seu texto produz significação desde
que o leitor atribua sentidos aos efeitos de memória que estão no fio
discursivo. O autor manifesta em seu texto através do pronome "nós"
a inclusão dos leitores e cria uma certa "intimidade" com relação
aos fatos abordados durante o seu relato.
O que chama a atenção é o
fato de que sua crítica, e "conselho" ao treinador Zagalo, estão
mais voltados para o jogador Edmundo. Para elucidar essa crítica à preferência
de Zagalo com a convocação de
Edmundo, o autor faz um movimento de retomada de um texto que, com certeza, é
compartilha com seus leitores: o conto popular do "O escorpião e a
tartaruga"'. O retorno deste texto faz com que sua memória, sua significação,
tenha relação com o procedimento do jogador Edmundo. Nos dois últimos parágrafos,
o comentarista incorpora o conto popular em sua crônica e faz a adaptação do
acontecimento, quando figurativiza o técnico Zagalo como "tartaruga"
e o jogador Edmundo como "escorpião".
Edmundo
não é um animal... é um araquinídeo de duas pernas. Zagalo é a tartaruga.
O rio está calmo.
O escorpião está sobre as
costas de Zagalo ( tartaruga).
O
articulista emprega o recurso da intertextualidade para produzir os efeitos de
memória, cujo argumento presente é a relação entre o comportamento do
escorpião (sua natureza) e a índole do jogador Edmundo (comportamento imutável
e contrário ao bom senso).
O
texto é estruturado no nível fundamental na idéia defendida pelo articulista:
a convocação/não-convocação do jogador Edmundo. No desenrolar da
crônica, percebe-se no fio
discursivo a oposição semântica:
No
nível da narração, Dalmo Pessoa, tenta manipular os leitores de sorte que
acreditem em suas idéias com relação à convocação dos jogadores Romário e
Edmundo. O cronista mostra-se competente, visto que apresenta uma série de
argumentos (fatos já acontecidos) sobre o comportamento dos jogadores:
Romário
interrompeu o tratamento muscular para curtir a noite...
É preciso que o craque seja
profissional acima de sua arte...
Indisciplina na Copa América
(Edmundo)
Comportamento em times
anteriores ( memória dos leitores)
O
autor ao finalizar o texto (penúltimo parágrafo) cria uma cena que, na época,
estava em seu início e vê a possibilidade de o tema veiculado pelo texto-memória
( conto popular) ser confirmado ou alterado.
Estamos a sete meses da Copa. O rio está calmo e a Tartaruga vai
começar a nadar, e o escorpião já está sobre as costas de Zagalo.
Essa
possibilidade é marcada no final do texto pelo sinal de pontuação: reticências.
A
ferroada, pela índole araquinídea e pelos antecedentes de Edmundo, é certa.
Resta saber se Zagalo tem algum antídoto contra o veneno edmundiano...
As reticências deixam aberta a possibilidade de uma possível mudança
no comportamento do jogador Edmundo que, até então, nas equipes por onde
atuou, comportou-se como um escorpião. O cronista deixa em aberto a sua crônica
e só o acontecimento histórico poderá preencher as reticências de seu texto
O processo empregado pelo
comentarista esportivo pode ser melhor entendido nas palavras de Foucault
(1989:26):
"...a volta de certos enunciados configura-se como uma simples
recitação que, no entanto, tem a função de reafirmar discursos, textos e
autores. Por isso, nessa repetição do mesmo, nessa volta do mesmo, há um novo
sentido que se constitui, um novo
que não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta".
O texto a seguir está inserido no livro "Lições de Texto:
Leitura e Redação de Platão e Fiorin (1996), em uma unidade intitulada Textos
Temáticos e Figurativos . O texto transcrito é um exemplo da
figuratividade, construído predominantemente com termos
concretos. Produz efeitos de realidade e, por isso, representa e cria uma
imagem do mundo Os autores também citam um
texto temático referente ao figurativo:
Cada ser humano tem uma índole, uma propensão natural, e ela não
muda, manifesta-se em todas as circunstâncias da vida, até mesmo quando essa
manifestação contraria o bom senso.
Era uma vez um escorpião que estava na beira de um rio, quando a
vegetação da margem começou a queimar. Ele ficou desesperado, pois, se
pulasse na água, morreria afogado e, se permanecesse onde estava, morreria
queimado. Nisso, viu um sapo que estava preparando-se para saltar no rio e,
assim, livrar-se do fogo. Pediu-lhe, então, que o transportasse nas costas para
o outro lado. O sapo respondeu-lhe
que não faria de jeito nenhum o que ele estava solicitando, porque ele poderia
dar-lhe uma ferroada, levando-o à morte por envenenamento. O escorpião
retrucou que o sapo precisava guiar-se pela lógica; ele não poderia dar-lhe
uma ferroada, pois, se o sapo morresse, ele também morreria, porque se
afogaria. O sapo disse que o escorpião estava certo e concordou e concordou em
levá-lo até a outra margem. No meio do rio, o escorpião pica o sapo. Este,
sentindo a ação do veneno, vira-se para aquele e diz que só gostaria de
entender os motivos que fizeram que ele o picasse, já que o ato era prejudicial
também ao escorpião. Este, então, responde que simplesmente não podia negar
a sua natureza.
(
PLATÃO, F.S. & FIORIN, J.L. Lições de texto: leitura e redação. São
Paulo, Ática, 1996.)
O
texto temático é composto de temas abstratos e explica as coisas do mundo,
ordenando-os e classificando-os. Dessa forma o texto figurativo tem uma função
representativa; e o temático, uma função interpretativa.
O gênero fábula é gênero
didático: tem por função transmitir um ensinamento. No caso, o texto em análise,
mostra o comportamento de pessoas que se identificam com o sapo e o
escorpião. O texto acima foi usado por Dalmo Pessoa para representar a
figura do jogador Edmundo. Uma das características da relação entre língua e
história é a construção histórica
criadora de figuras que retornam nos mecanismos da intertextualidade, trazendo
temas de outros momentos históricos. Esse processo alimenta a percepção do
senso comum e leva à naturalização
das idéias em circulação em certo momento histórico
(Gregolin: 2001).
A retomada de outros textos, como já foi comentado, chama-se
intertextualidade. Alguns autores fazem comentários sobre esse tipo de
intertextualidade. Entre eles, pode ser citado: Ingedore (2001-48-49) que fala
em intertextualidade em sentido estrito. No caso específico do texto de Dalmo
Pessoa, a autora classifica em intertextualidade das semelhanças, na qual o
texto incorpora o intertexto para seguir-lhe a orientação argumentativa.
apoiando nele a sua argumentação. Já Maingueneau (1987) acrescenta que a
intertextualidade das semelhanças tem o valor de captação. Com base nas
concepções dos analistas do discurso, Authier-Revuz (1982) discorre sobre
intertextualidade manifesta, na qual outros textos estão explicitamente
presentes em um texto analisado, marcados ou sugeridos na superfície textual.
O escorpião chegou à beira do rio caudaloso e queria atravessá-lo.
Perto, viu um sapo e pediu ajuda: "Você me leva nas costas, sapo? Tenho
que atravessar". O sapo, meio sem jeito, respondeu: "Difícil, você
é escorpião, pode me ferroar e aí eu morro". O escorpião emendou:
"Nada disso. Prometo que serei bonzinho. Jamais farei isso com você".
O sapo topou e lá no meio do rio, o escorpião olhou bem para o sapo e disse:
"Não tem jeito. Eu sou um escorpião, mesmo. Ferrou o sapo e os dois
morreram.
Essa historinha merece ser
lembrada no momento em que o escorpião Edmundo ferrou a autoridade do sapo
Zagallo e, além dos dois, sem a união da seleção, o projeto penta pode
afundar. Os desmentidos virão, outras confirmações também, como veio a do
chefe da delegação, Dr. Fábio Koff. Ainda que a situação seja consertada,
com o enquadramento de Edmundo ou até mesmo um corte, que foi descartado
inicialmente, ficará, mais uma vez, a dúvida: Edmundo não poderá aprontar
uma pior durante a Copa? As suspeitas são muitas, todas elas lastreadas no seu
prontuário de indisciplinas. Agora, o
atrito de Edmundo com Júnior Baiano.
Zagallo sabia o grau de
periculosidade do escorpião Edmundo. Zico, idem. Ambos censuraram o jogador,
publicamente, mas abriram-lhe outro crédito de confiança na sua recuperação,
depois do excelente campeonato
nacional que fez. Adiantou? Não.
Edmundo sonhava com o lugar
de Romário. Zagallo preferiu Bebeto. Quando percebu que tinha poucas chances,
apelou com Leonardo, um craque e uma pessoa que sabe influenciar pessoas e fazer
amigos, principalmente quando este têm o poder. Edmundo é diferente: se perde
na bola a chance de ser titular, justa ou injustamente, dispara seus palavrões
e procura usar de tudo o que sua oca mente produz em matéria de desatinos e
loucuras.
Zagallo não consegue tirar o escorpião de suas costas. Ricardo Teixeira
veio para fazer o papel de bombier ( bombeiro) e apagar as chamas que ameaçam
carbonizar as chances do penta em conseqüência de mais uma que Edmundo
aprontou. Zico é favorável à disciplina e isto significa corte. E um corte
reduz o grupo a 21 e a dois atacantes o poder de fogo da seleção. Com Edmundo
ou sem Edmundo, uma coisa é certa: Edmundo traiu a confiança de Zagallo e
rachou a unidade do grupo. Ganhar o penta com tantos problemas fica mais difícil,
mas não é impossível. Desde que a disciplina seja restabelecida. Porque o
grupo é bom. Se ninguém atrapalhar, o penta vem.
(
Gazeta Esportiva - junho de 1998)
O
cronista Dalmo Pessoa, após seis meses, retoma as idéias do 1o
texto em um outro texto e dá continuidade ao percurso temático/figurativo
expresso anteriormente. Essa retomada era previsível, visto que o cronista
terminou o 1otexto com aspas. O autor pensava/imaginava que os fatos
históricos mudassem o percurso temático (trajetória) do jogador Edmundo. O
autor imagina a atualização da interpretação (a inversão valorativa) dos
movimentos da história que permitiriam uma outra leitura.
O autor, no 1o texto,
seguiu uma orientação argumentativa, empregando o valor de captação;
enquanto no 2o texto, o
autor prevê que o valor de captação seria alterado para subversão, o qual
mostraria a improcedência da figurativização em relação ao jogador Edmundo.
Observamos no texto que o percurso temático do1o
texto continua: "cada ser humano tem uma índole, uma propensão
natural, ele não muda..."
Tal fato foi constatado
pela indisciplina reinante naquele momento na seleção, provocada pelo jogador
Edmundo. Maingueneau (1976) considera que a intertextualidade é um componente
decisivo nas condições de produção e afirma que um discurso constrói-se
através de um já-dito em relação ao qual toma posição, processo utilizado
por Dalmo Pessoa no texto em estudo.
Austin, um dos estudiosos da
pragmática, considera a linguagem como forma de ação, na qual cada recurso de
fala utilizado tem em vista um objetivo. Desse modo, a intertextualidade
empregada por Dalmo Pessoa pretende convencer os seus leitores de que a índole
humana é mesmo uma propensão natural e dificilmente muda no decorrer da história
"mesmo que contrarie o bom senso".
O
professor pode e deve instrumentalizar o aluno para compreender o processo
da intertextualidade. O texto da mídia também pode ser objeto de uma
atividade em sala de aula, cuja função – e não pretexto para estudar
unidades lingüísticas, é provocar sentidos. A concepção discursiva deve ser
contemplada nas aulas de leitura, nas quais há a interação (de leitor com
texto, de leitor com autor). Outras leituras devem ser orientadas pelo
professor, não somente as atividades dirigidas pelo livro didático.
Para
finalizar as considerações sobre o processo da intertextualidade, é oportuno
citar Frasson (1992, p. 91)
"A intertextualidade não se resume a uma simples presença do outro
no texto, pois a escolha do intertexto já representa uma postura ideológica. A
citação de uma citação já a transforma, o recorte no qual inserido, as
supressões que poderão ser operadas no seu interior, o modo como é tomada no
comentário podem revelar a confirmação ou a negação de outro texto. Por
isso, a intertextualidade não é
uma mera adição de texto, mas um trabalho de absorção e transformações de
outros textos, com vistas a determinados objetivos"
AUTHIER-REVUZ,
J. Hétérogénéité montrée et hétérogénéité constitutiva: éléments
pour une approche de l’autre dans le discours. DRLAV- Revue de
Linguistique, V.26, 1982, p.91-151.
_____.“Heterogeneidade(s)
enunciativa(s)”.Cadernos Lingüísticos.
Campinas, Unicamp, 19: 25-42.
BAKHTIN,
M. Marxismo e Filosofia de Linguagem.Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira.
São Paulo: Hucitec, 1986.
_____.
“Os Gêneros do Discurso”. Estética da Criação Verbal. São Paulo:
Martins Fontes, 1994, p. 275-326.
_____.Problemas
da Poética de Dostoiévski. Trad. P. Bezerra. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária, 1981.
_____.Teoria
do Romance. Trad. Aurora F. Bernardini e outros. São Paulo:
Unesp/Hucitec, 1988.
COURTINE, Jean-Jaques. "Analyse du Discours". Langue
Française. Paris: Larousse, jun. 1984.
DELEUZE,
G. Diferença e Repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Graal, 1988.
FAIRCLOUGH,
N. Discurso e Mudança Social. Trad. Izabel Magalhães. Brasília: UNB,
2001.
FOUCAULT,
M. A Arqueologia do Saber. (2a
ed.) Rio de Janeiro: Forense, 1995.
_____.
Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1993.
FRASSON,
R. M. D. "A Intertextualidade como Recurso de Argumentação". Letras
(4). Santa Maria, 1982, 85-96.
GRÉSILLON, A. & MAINGUENEAU,
D. “Polyphonic, Proverbs et Détournement”. Langages. Paris:
Larousse, 1984, 112-125.
KIRCHOF,
E. R. “Enunciação e Subjetividade”. Semiótica e Pragmática de
Comunicação. (ORG) Elizabeth B. Duarte. São Leopoldo: Unisino, 1997.
KOCH,
I. G. V. "O Texto e a (Inevitável) presença do outro". Letras.
Porto Alegre. Janeiro/junho, 1997, p.107-124.
_____.
Argumentação e Linguagem. São Paulo: Cortez, 1984.
KRISTEVA,
J. Introdução à Semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.
MAINGUENEAU,
D. Genèses du Discours. Bruxelles:
Mardaga, 1984.
_____.Initiation aux Méthodes
de l’analysis du Discours. Paris:
Hachette,1976.
_____.
Elementos de Lingüística para o Texto Literário. Trad. Maria A. Matos. São
Paulo: Martins Fontes. 1996.
_____.
Novas Tendências em AD. Campinas: Pontes, 1989.
ORLANDI,
E. A Linguagem e seu Funcionamento: As Formas do Discurso.(4a
ed.) Campinas: Pontes, 1996.
_____.
“Os Efeitos de Leitura na Relação Discurso-Texto”. Aulas de Português:
Perspectivas Inovadoras.(ORG) André Valente. Petrópolis: Vozes, 2000.
PÊCHEUX,
M. Analyse Automatique du Discours. Paris: Dunod, 1969.
_____.
O Discurso: Estrutura ou Acontecimento. Trad. Eni Orlandi. Campinas:
Pontes, 1990.
_____.
Papel da Memória. In:
ACHARD,P. et al. Campinas: Pontes, 1999, p.49-57.
PERELMAN,
Ch. Le Champ l'Argumentation. Bruxelles: Presses Universitaires, 1970.
PESSOA,
D. "Zagalo: O Escorpião já Subiu em suas Costas". Gazeta
Esportiva. São Paulo, novembro, 1997.
_____.
"O Sapo Zagalo e o Escorpião Edmundo". Gazeta Esportiva. São
Paulo, junho, 1998.
PLATÃO,
F. S. & FIORIN, J. L. Lições de Texto: Leitura e Redação. São
Paulo: Ática, 1996.